"Tenta te orientar pelo calendário das flores, esquece por um momento os números, a semana, o dia do teu nascimento. Se conseguires ser leve, aproveite, enche tuas malas de sonho e toma carona no vento."

Fernando Campanella

segunda-feira, julho 14

Toda Mafalda

"Toda Mafalda
Quadrinhos críticos, charmosos e engraçados"




"Mafalda é um dos personagens mais ricos e interessantes das histórias em quadrinhos. Desconhecida da atual geração de leitores, essa menininha argentina e toda a sua turma foram criadas, nos anos 1960, por Quino, quadrinista portenho famoso em todo o mundo. O contexto em que foi criada explica, em parte, uma das peculiaridades dessa impressionante coleção de tiras publicadas em jornais e que foram editadas em vários livros, inclusive numa coletânea conhecida como “Toda Mafalda”.

Filhos da contracultura, de uma época de rebeldia e crítica, de busca incessante pela autonomia e também de posicionamentos políticos idealistas em favor de alternativas viáveis ao capitalismo, Mafalda e os demais personagens de Quino carregam em suas histórias todo o inconformismo daquela geração de pessoas.

Se não bastasse isso, toda a turma da Mafalda nasceu na Argentina, país vizinho em relação ao qual cultivamos certas rivalidades, mas que certamente possui uma população culturalmente bem formada, politicamente engajada e, além do mais, esclarecida o suficiente para sempre manifestar suas insatisfações, seus sonhos e seus objetivos.

Percebemos isso, por exemplo, quando Mafalda se debruça sobre o mapa do mundo, visualiza os países, nota a diferença de cores utilizadas para representar cada uma das nações e o seu comportamento não é o de aceitar passivamente a informação que lhe é apresentada. Ela percebe as tonalidades, a beleza das cores e também é capaz de manifestar a sua indignação por saber que todo o colorido do mapa nada tem a ver com as intenções dos países.










Suas histórias curtas são tão surpreendentes e precoces em certas temáticas e idéias que quando observamos atentamente as tiras conseguimos notar preocupações como a questão ambiental. Num de seus quadrinhos a menina encontra o pai e lhe pergunta sobre as pilhas para o rádio da família. Depois de pegar as pilhas ela se encaminha para o aparelho, substitui as velhas por novas baterias e depois contempla o resíduo de sua substituição de forma pensativa. Ao final conclui: “O que devemos fazer com o cadáver da outra?”.

É basicamente o que nos perguntamos atualmente quanto ao lixo produzido em nossas cidades. Quantidades cada vez maiores de plásticos, vidros, madeiras, metais, restos de alimentos e tantos outros entulhos são depositados diariamente na porta de nossas casas, em latas de lixo ou caixas. Para onde vai tudo isso? O que é feito do lixo? Não daria para criar programas de reciclagem em larga escala? Não contaminamos o solo ao enterrar todo esse material jogado fora?

As frustrações do cotidiano também surgem como temática presente nas tiras de Quino e demonstram as nossas insatisfações e decepções a nos colocar em situações de stress e desgaste que poderiam ser contornados ou superados se fôssemos apenas um pouco mais pacientes e/ou compreensivos. É também uma antecipação de um dos grandes males que vivemos desde as duas últimas décadas do século XX, ou seja, a submissão à velocidade em nossas vidas a provocar doenças e psicoses muitas vezes incuráveis.

Mafalda pensa consigo mesma que “Parece que hoje é um desses dias em que a gente entra na vida pela porta dos fundos” ao perceber que pelas ruas há pessoas mendigando, agitação e brigas no trânsito, nervosismo e palavrões nas atitudes e falas dos cidadãos ao final de um simples passeio feito por ela pelas ruas de sua cidade.




Como dizem os profetas do apocalipse, de boas intenções o inferno já está cheio. Não basta simplesmente pensar ou falar de forma a proferir os melhores princípios e a ética sonhada pela sociedade, é necessário agir nesse sentido, realizar transformações que efetivem uma prática mais solidária, responsável, respeitável e digna. Mafalda apenas expressa através de seus quadrinhos que devemos repensar o mundo, o cotidiano e as relações que aqui estabelecemos...

Temas polêmicos, como o racismo, constituem assuntos recorrentes nos encontros da turminha de crianças argentinas criadas por Quino. Numa conversa com Susanita a respeito da gravidez de sua mãe, Mafalda é identificada como defensora dos direitos civis e da igualdade social por sua amiga e, depois é inquirida sobre a possibilidade de ter um irmãozinho negro.

Os comentários de Susanita são sempre pueris e no sentido desse nascimento como sendo uma expressão democrática. Mafalda apenas escuta enquanto seu pai espreita o bate-papo das duas meninas. Depois da afirmação da possibilidade de ter um filho negrinho aparece Susanita com um cesto de lixo na cabeça a afirmar: “Puxa, mas o que foi que deu no seu pai?”.

A inocência da infância se contrapõe a uma discussão que gera grande debate ainda hoje. A amiga de Mafalda, desconhecedora dos caminhos da fecundação e os laços de intimidade relacionados a tal encontro nem imagina que tenha ofendido a honra do pai de Mafalda. Susanita apenas pensava estar levantando uma hipótese válida e interessante no sentido da tolerância e respeito a diversidade étnica...




Até mesmo a escola é fruto da reflexão da esperta e atenta niña portenha. Numa de suas aulas, ao ser chamada à frente para conjugar o verbo confiar no tempo presente, Mafalda se mostra preparada e realiza a tarefa totalmente de acordo com o que se espera. Enquanto isso a professora, sentada em sua cadeira, tendo ao fundo a lousa, presta atenção ao desempenho de sua aluna. Quando termina o exercício, Mafalda se volta para a professora e a surpreende com a afirmação: “Como somos ingênuos, não?”.

Tanta confiança por parte de todos os mencionados em sua tarefa despertou uma reação de perplexidade e até de indignação em Mafalda. Por que confiamos tanto? Temos motivos para agir dessa forma? Somos respeitados plenamente em nossos direitos? Como podemos explicar as desigualdades? De que forma podemos justificar a pobreza e as exclusões? Essas são apenas algumas das perguntas que poderiam estar passando pela cabeça da personagem na alusão criada por Quino...

E as nossas crianças? E os nossos alunos? Possuem senso crítico? Buscam maior esclarecimento? Questionam o mundo em que vivem? Ou são apenas acomodados e alienados a cumprir as horas que lhes foram concedidas pela graça divina?

E se ampliarmos a pergunta e questionarmos a escola e não apenas os estudantes sobre a necessidade de maior participação, posicionamento político e criticidade? Será que os professores estão fazendo a sua parte ou apenas batem o cartão de ponto, dão aulas que pouco ou nada acrescentam e apenas esperam o pagamento no final do mês? O que estamos fazendo em sala de aula é representativo para nossos alunos e para a sociedade?

Apesar de todos esses temas e muitos outros que instigam e provocam os leitores a pensar e repensar o mundo em que vivem, as tiras de Mafalda são também pródigas em ternura e carinho tanto no âmbito familiar quanto entre os amigos. Em nosso atual contexto de vida, em que as pessoas pouco se doam ou fazem em prol do próximo, são também importantes essas lições extraídas do contexto familiar e de amizades da personagem.




Numa de minhas tiras preferidas a pequena Mafalda levanta-se de sua cama e vai ao banheiro atrás de seu pai que está fazendo a barba. Ao encontrá-lo, a menina lhe deseja um bom dia e o felicita por sua juventude e beleza dando-lhe um caloroso beijo no rosto ainda não barbeado. Surpreso e maravilhado com o gesto da filha, o pai aparece num outro quadrinho, no ônibus, ao lado de um atônito passageiro, com o lado do rosto em que foi beijado pela filha sem barbear enquanto o resto de sua face está limpa...

Aparente brincadeira de criança, a leitura de histórias em quadrinhos pode muito bem nos levar a sérias e importantes reflexões sobre o mundo em que vivemos. O mais interessante em tudo isso é que ao mesmo tempo em que aprendemos e nos conscientizamos podemos nos divertir e rir de nossos descaminhos e imperfeições. Há muitas situações com as quais acabamos nos identificando por parecerem demais com o que acontece em nossas próprias casas..."

João Luís Almeida Machado Editor do Portal Planeta Educação

Vale a pena conferir Toda Mafalda, eu já tenho a minha e você?
Uma boa semana cheia de insights!!!
Val